Mais que uma data no calendário, a mulher negra também precisa de cuidados para que as marcas do racismo, que datam da infância, não causem danos irreparáveis no modo como ela se vê e se relaciona com o mundo. Em um bate-papo com a Glamour, a psicóloga Shenia Karlsson reflete sobre o assunto
Hoje, 25, é o Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-americana e Caribenha. Mais que uma data no calendário escolhida para celebrar a existência dessas mulheres, a ocasião serve para lembrar o grupo contemplado por ela sobre o ato de resistir. Sim, é sobre resistência. Por estar inserida em uma sociedade que levou anos para aceitar a existência do corpo negro sem atribuir um valor negativo a ele. Por ter que batalhar duas, três vezes mais, para provar para o mundo – e muitas vezes para si mesma – que merece estar no lugar que ocupa. Por não se sentir digna de afeto ao se dar conta de quantas vezes ele foi negado. Por ter o corpo sexualizado, a capacidade questionada e, além do machismo que afeta todas as mulheres, também ter que lidar com o racismo diariamente.
Com tudo isso, ainda que exista um avanço comparado com o cenário lá de atrás, como será que está a saúde mental da mulher negra hoje? Segundo a psicóloga Shenia Karlsson, não é exagero dizer que ela pede socorro. “A estrutura de saúde não foi construída para atender corpos negros em geral. E a mulher negra, com certeza, vai ter um déficit maior, considerando o lugar social dela”, aponta.
O racismo e as marcas que vêm da infância
Ao longo dos 12 anos em que trabalha como psicóloga – atendendo, principalmente, mulheres negras em seu consultório particular e nas instituições em que atua no Brasil e em Portugal -, Shenia diz que é comum se deparar com pacientes que passaram por experiências traumáticas na infância e já na vida adulta. Dentre eles, constam vários casos de violência obstétrica, principalmente entre mulheres negras periféricas, que muitas vezes nem têm acesso ao pré-natal.
No âmbito da saúde mental, o dano também é grande – tanto pelo atraso no conhecimento do assunto quanto pela ideia internalizada de que o corpo negro não é merecedor de cuidados. “A comunidade negra ainda está se entendendo enquanto corpo merecedor de cuidado. Os homens negros são os que menos procuram serviço de saúde; só em estágio avançado de doença. Psicologia, então… Eu ainda atendo uma maioria de mulheres negras, mas é um grupo pequeno se a gente for pensar na grande massa”, analisa.
E o problema é de longa data, tanto historicamente quanto na vida pessoal de cada uma, como a psicóloga percebe entre suas pacientes: “Eu não lembro de ter atendido muitas mulheres negras que não trazem relatos de experiências traumáticas da infância. Nos descobrimos negros através do estigma, do preconceito, do racismo, e a criança ainda não tem os recursos mentais para lidar com essa experiência”.
Síndrome da Impostora e Racismo
A consequência de tudo isso, segundo ela, é um acúmulo de tristezas que tem impacto na vida afetiva, na criação dos filhos e até mesmo na vida profissional – com a falada “Síndrome da Impostora” se misturando com os reflexos de um racismo cruel. “A mulher negra é socializada para falhar, para ser excluída. Toda hora questionada, silenciada e colocada numa posição de suspeita – ‘será que ela é capaz mesmo?’. Eu mesma sou um exemplo: quando as pessoas não viam minha foto e chegavam até mim sem saber quem eu era, se assustavam. Uma mulher negra psicóloga bem recomendada e em um bairro nobre do Rio de Janeiro?”.
Shenia afirma que, ao lidar com essa pressão externa o tempo inteiro, é comum que a mulher questione sua própria posição e não se sinta merecedora de ocupar o espaço em que está. E é aí que entra a terapia: “se esse olhar é direcionado para mim o tempo inteiro, é claro que, em algum momento, vou questionar o meu lugar como psicóloga. Eu não faço mais isso porque são 16 anos de análise. Eu tenho todo uma equipe de cuidado para me dar respaldo: trabalho com isso, pesquiso e estudo. Mas imagina as mulheres que não fazem? Onde é que começa a síndrome da impostora e onde é que o racismo se mistura, se dilui e se confunde?”, questiona.
A terapia como cura de mulheres negras e reconciliação com a história
Para fazer essa diferenciação, e entender todos os outros processos que fazem parte da existência de uma mulher negra, o processo de terapia é o caminho para romper com o histórico de silenciamento. “A psicologia é um instrumento muito poderoso para trabalharmos nossos enfrentamentos. Eu, enquanto psicóloga, não posso dizer que amanhã não vai ter racismo, mas posso fazer com que a pessoa reconheça os recursos internos para lidar com ele. A psicoterapia para mulheres negras é um processo de descolonização da mente, dos afetos e das alianças”, afirma.
Ainda que um longo caminho tenha sido percorrido dos últimos anos para cá, o cenário não é dos melhores: as mulheres negras ainda encabeçam os índices de família monoparental, de maternidade solo, violência doméstica e consequências da falta de afeto – como celibato definitivo e solteirice. Mas, apesar de tudo isso, Shenia Karlsson é otimista.
Com o advento da internet e a popularização de discussões sobre saúde mental, ela vê um cenário positivo em que a busca pela cura tem ganhado espaço. “Tem um movimento muito bonito das mulheres negras se entendendo como corpo descuidado. Entendendo que é o momento de pensar na saúde mental, nos próprios processos, no próprio desenvolvimento social. A psicologia não tem sido vista como um lugar apenas para tratar problemas como depressão e ansiedade, mas, sim, como desenvolvimento pessoal e autoconhecimento também. Isso é muito bonito”, destaca.
E sim, o racismo e a estrutura arquitetada para rejeitar a existência de corpos negros em geral causam marcas profundas, mas esse não precisa ser o fim da história: como ressalta Shenia, é possível refazer o roteiro. “É sobre desconstruir e entender como deixar de fazer a manutenção do racismo para construir uma forma de vida que faça sentido para a gente. Quais são as amarras que é possível romper? É possível olhar para essa história e fazer as pazes”, finaliza.
25 de julho de 2022
Fonte: Por Nívia Passos / G1
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